“Uma questão de crença”
Ouve-se por aí que o brasileiro
é um povo que tem fé, é bastante religioso (o que de fato constata-se em
pesquisas estatísticas – a maior população de católicos do mundo reside aqui). Diz-se
por aí, também, que somos supersticiosos e nos interessamos bastante por
fenômenos “paranormais”, independentes de termos ou não uma religião assumida.
Primeiro: diferentemente do que a
maioria dos críticos afirma (em especial os céticos, tal como eu), acho
inadmissível concluir que esse jeito de ser “brasileiro místico” seja reflexo do
baixo índice de escolaridade no país. Isso é preconceito e desconsidera
riquezas culturais e folclóricas que produziram grandes ensinamentos.
Segundo: a busca por explicações grandiosas,
divinas, superiores e espirituais sempre foi algo coletivo e presente em nossa
natureza humana, para qualquer povo do mundo e em qualquer época. Ao longo da
história, mesmo antes de documentações gregas ou anteriores, a sensação de
todos se perguntarem de onde viemos, porque estamos aqui e para onde iremos, sempre
fundamentaram esses questionamentos há milênios.
Terceiro: É importante ressaltar
que, apesar de frequente, nem sempre esses questionamentos seguiram motivados com
propósitos de acolher uma angústia humana, uma “cura” ou proteção. Apesar de,
como dito anteriormente, ela ocorrer com mais frequência em momentos de
sofrimento e necessidade de ajuda.
Quarto: Não devemos ver com desgosto
qualquer tipo de crença, contanto que ela não tenha propósitos impositivos para
o outro. O que, para mim, seria sinônimo de fanatismo. Dessa maneira, o que
mais me chama a atenção está nos extremos. Tanto o religioso que força seu
semelhante a uma conversão quanto o ateu convicto e inconformado tem, a meu ver,
um “deleite” fanático.
Há algum tempo atrás, muitos se manifestaram
inconformados com as repercussões de como o tal falado “João de Deus” poderia
estar tão famoso e o quanto o povo que o visitara era ignorante e estava sendo
manipulado por uma “lavagem cerebral”. Como não há comprovações científicas,
realmente fica difícil aceitar de “bate-pronto” muitas ideias. Mas a crença
coletiva explica, junto com a antropologia e descobertas das Neurociências, por
exemplo, muitas possibilidades de “curas” com determinados rituais praticados.
Um deles, os relacionados ao uso do chá do Santo Daime, através do uso da Ayahuasca.
Em relação ao papel da educação,
vale lembrar que ela não escapa de ser um dispositivo de acesso à informação e
institucionalmente detém um papel, por excelência, em ser crítica e ao mesmo
tempo construtiva para a sociedade. Mas que deve ser desprovido de “ideologias”.
Um povo que tem acesso às informações de maneira formatada não sente-se obrigado
a mexer em algo que está pronto. Ou seja, tende a reproduzir e isso é incompatível
com o verdadeiro papel de educar. Além do mais, isso tem consequências bastante
catastróficas, porque educar, em sua essência, ultrapassa os limites do simples
saber.
Mas voltando à velha discussão vinculada
à educação, muitos leitores talvez concordem comigo que um povo com boa
educação é aquele que respeita as crenças do outro, sem preconceitos. Mesmo que
discorde delas. O educado aceita o outro em sua forma de ser, não impõe suas crenças,
discute e está aberto ao confronto com suas próprias convicções. Não rebaixa, mas
ouve, reflete e se posiciona de igual para igual.
Como dito anteriormente, programas
sensacionalistas, que falavam sobre as curas mediúnicas de “João de Deus”,
muitos criticaram fervorosamente uma suposta ignorância daqueles a que
submetiam-se a tais rituais. Quer postura mais estúpida e ignorante do que criticar
aqueles que escolhiam ver o tal do “curador” como uma alternativa ao seu
sofrimento? Ler um pouco de antropologia, Lévi-Strauss, Montaigne talvez esfacele
pensamentos sólidos da dita elite do conhecimento a rever seus conceitos. Qual
o problema de alguém acreditar em algo ou em alguém de forma que seus
pensamentos não interfiram no outro, a não ser a si mesmo? A força de uma
crença é muito grande e quando compartilhada coletivamente pode ter uma
dimensão de extremo poderio. Isso já foi muito falado, inclusive por Freud e
Jung. Mas ainda faltam aparatos para medirmos ou “equacionarmos” o poder da crença.
Lembro que as melhores aulas que
eu frequentei geralmente ocorreram fora das salas de aulas e, muito
frequentemente, nos lugares e em situações inusitadas. Com pessoas também
inusitadas. São momentos de viradas, em que colocamos por água abaixo tudo
aquilo que achávamos que estava certo e nos desconcertamos. Refletimos e nos
reestruturamos em nossas tramas mentais aquilo que estava consolidado em nossa
memória, aprendida e muitas vezes, “enferrujada”. O novo ocorre pela
possibilidade de deixar-se envolver-se pelo acaso. O novo nos faz crescer.
Acreditar ou não em algo se encaixa nisso, quando nos permitimos colocar aquilo
que aprendemos à prova. Apenas nosso contínuo confronto com nós mesmos nos
dá autoridade sobre nós e nos torna individuais, únicos e capazes de nos
posicionar diante de uma cultura, ao mesmo tempo que acatamos e aprendemos
dentro dela.
Para isso é preciso ouvir,
debater, viver, reviver para criar e recriar nossas próprias crenças, porque
não são estáticas. Nós, humanos, sempre vivemos de crenças, mas estamos nos
recriando sempre e crescendo com as quebras de crenças passadas. A renovação da
vida está na fluidez de como encaramos ela. Criticar algo sem nem mesmo tentar
compreender o que se passa na vida de cada um é um erro fatal, mas infelizmente
isso é frequente. Pode nos transformar em humanos agressivos, competitivos, sem
compaixão e com a falsa sensação de superioridade diante do outro. Os avanços
da boa ciência e das práticas psicológicas tem consciência disso. O debate da
boa educação deve abarcar tudo e ao mesmo tempo nada. É preciso deixar-se
levar para depois voltar e visualizar de uma forma mais inteira as questões de
porque temos convicções. Só dessa maneira podemos evoluir e talvez respeitar as
diferenças.
Impor uma crença é um ato de
violência, assim como considero violento não escutar ao próximo, quando
convocado. Porque se alguém vai a uma seita ou “ritual mágico” e se sente bem
deve ser discutido numa sessão de terapia, por exemplo? Cada um é soberano em
suas escolhas e crenças. Todos nós somos preconceituosos, no sentido de que
nossa história exige de nós uma interpretação para enxergar os fenômenos. Isso
é algo adaptativo. No entanto, nunca podemos fazer de nossas crenças uma
verdade absoluta a ponto de querer impor algo a alguém. A ligação entre nós,
humanos, é a comunicação. A origem da palavra está em tornar algo comum,
compartilhar. É a partir do diálogo, das experiências e de nossa história que
criamos nosso mundo. Mas ele deve ser compartilhado e vivido de forma a amar as
diferenças e não repudiá-las.
Mergulhar em outra cultura é
tornar-se ciente de que isso é talvez um dos passos mais nobres que um homem pode
dar. A busca da verdade de cada um, ou seja, das crenças, são criações
humanas muito particulares. O fanático impõe aquilo que ele já tem de
pronto e estabelecido em sua trama pessoal de conhecimento e quer impor ao
outro, como disse uma vez Calligaris. O nobre é aquele que sabe que impor algo
é uma tentativa de privar a liberdade do outro e a sua própria. Por isso,
sejamos mais tolerantes com as crenças, se elas não são impostas e não
violentas para nós, não há motivos para revoltas, mas para crescimento de todos
os lados. As crenças nos tornam únicos e sociais dentro de um grupo homogêneo,
transformando-o em um grupo mais heterogêneo. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, são
fluídas e corrente de vida.
Daniel Stephan Wajss
bacana e muito esclarecedor!
ResponderExcluirsuper bj!