domingo, 5 de agosto de 2012

(In) tolerâncias: reflexões sobre crenças e suas implicações nas relações humanas


“Uma questão de crença”

Ouve-se por aí que o brasileiro é um povo que tem fé, é bastante religioso (o que de fato constata-se em pesquisas estatísticas – a maior população de católicos do mundo reside aqui). Diz-se por aí, também, que somos supersticiosos e nos interessamos bastante por fenômenos “paranormais”, independentes de termos ou não uma religião assumida.
Primeiro: diferentemente do que a maioria dos críticos afirma (em especial os céticos, tal como eu), acho inadmissível concluir que esse jeito de ser “brasileiro místico” seja reflexo do baixo índice de escolaridade no país. Isso é preconceito e desconsidera riquezas culturais e folclóricas que produziram grandes ensinamentos.
Segundo: a busca por explicações grandiosas, divinas, superiores e espirituais sempre foi algo coletivo e presente em nossa natureza humana, para qualquer povo do mundo e em qualquer época. Ao longo da história, mesmo antes de documentações gregas ou anteriores, a sensação de todos se perguntarem de onde viemos, porque estamos aqui e para onde iremos, sempre fundamentaram esses questionamentos há milênios.
Terceiro: É importante ressaltar que, apesar de frequente, nem sempre esses questionamentos seguiram motivados com propósitos de acolher uma angústia humana, uma “cura” ou proteção. Apesar de, como dito anteriormente, ela ocorrer com mais frequência em momentos de sofrimento e necessidade de ajuda.
Quarto: Não devemos ver com desgosto qualquer tipo de crença, contanto que ela não tenha propósitos impositivos para o outro. O que, para mim, seria sinônimo de fanatismo. Dessa maneira, o que mais me chama a atenção está nos extremos. Tanto o religioso que força seu semelhante a uma conversão quanto o ateu convicto e inconformado tem, a meu ver, um “deleite” fanático.
Há algum tempo atrás, muitos se manifestaram inconformados com as repercussões de como o tal falado “João de Deus” poderia estar tão famoso e o quanto o povo que o visitara era ignorante e estava sendo manipulado por uma “lavagem cerebral”. Como não há comprovações científicas, realmente fica difícil aceitar de “bate-pronto” muitas ideias. Mas a crença coletiva explica, junto com a antropologia e descobertas das Neurociências, por exemplo, muitas possibilidades de “curas” com determinados rituais praticados. Um deles, os relacionados ao uso do chá do Santo Daime, através do uso da Ayahuasca.
Em relação ao papel da educação, vale lembrar que ela não escapa de ser um dispositivo de acesso à informação e institucionalmente detém um papel, por excelência, em ser crítica e ao mesmo tempo construtiva para a sociedade. Mas que deve ser desprovido de “ideologias”. Um povo que tem acesso às informações de maneira formatada não sente-se obrigado a mexer em algo que está pronto. Ou seja, tende a reproduzir e isso é incompatível com o verdadeiro papel de educar. Além do mais, isso tem consequências bastante catastróficas, porque educar, em sua essência, ultrapassa os limites do simples saber.
Mas voltando à velha discussão vinculada à educação, muitos leitores talvez concordem comigo que um povo com boa educação é aquele que respeita as crenças do outro, sem preconceitos. Mesmo que discorde delas. O educado aceita o outro em sua forma de ser, não impõe suas crenças, discute e está aberto ao confronto com suas próprias convicções. Não rebaixa, mas ouve, reflete e se posiciona de igual para igual.
Como dito anteriormente, programas sensacionalistas, que falavam sobre as curas mediúnicas de “João de Deus”, muitos criticaram fervorosamente uma suposta ignorância daqueles a que submetiam-se a tais rituais. Quer postura mais estúpida e ignorante do que criticar aqueles que escolhiam ver o tal do “curador” como uma alternativa ao seu sofrimento? Ler um pouco de antropologia, Lévi-Strauss, Montaigne talvez esfacele pensamentos sólidos da dita elite do conhecimento a rever seus conceitos. Qual o problema de alguém acreditar em algo ou em alguém de forma que seus pensamentos não interfiram no outro, a não ser a si mesmo? A força de uma crença é muito grande e quando compartilhada coletivamente pode ter uma dimensão de extremo poderio. Isso já foi muito falado, inclusive por Freud e Jung. Mas ainda faltam aparatos para medirmos ou “equacionarmos” o poder da crença.
Lembro que as melhores aulas que eu frequentei geralmente ocorreram fora das salas de aulas e, muito frequentemente, nos lugares e em situações inusitadas. Com pessoas também inusitadas. São momentos de viradas, em que colocamos por água abaixo tudo aquilo que achávamos que estava certo e nos desconcertamos. Refletimos e nos reestruturamos em nossas tramas mentais aquilo que estava consolidado em nossa memória, aprendida e muitas vezes, “enferrujada”. O novo ocorre pela possibilidade de deixar-se envolver-se pelo acaso. O novo nos faz crescer. Acreditar ou não em algo se encaixa nisso, quando nos permitimos colocar aquilo que aprendemos à prova. Apenas nosso contínuo confronto com nós mesmos nos dá autoridade sobre nós e nos torna individuais, únicos e capazes de nos posicionar diante de uma cultura, ao mesmo tempo que acatamos e aprendemos dentro dela.
Para isso é preciso ouvir, debater, viver, reviver para criar e recriar nossas próprias crenças, porque não são estáticas. Nós, humanos, sempre vivemos de crenças, mas estamos nos recriando sempre e crescendo com as quebras de crenças passadas. A renovação da vida está na fluidez de como encaramos ela. Criticar algo sem nem mesmo tentar compreender o que se passa na vida de cada um é um erro fatal, mas infelizmente isso é frequente. Pode nos transformar em humanos agressivos, competitivos, sem compaixão e com a falsa sensação de superioridade diante do outro. Os avanços da boa ciência e das práticas psicológicas tem consciência disso. O debate da boa educação deve abarcar tudo e ao mesmo tempo nada. É preciso deixar-se levar para depois voltar e visualizar de uma forma mais inteira as questões de porque temos convicções. Só dessa maneira podemos evoluir e talvez respeitar as diferenças.
Impor uma crença é um ato de violência, assim como considero violento não escutar ao próximo, quando convocado. Porque se alguém vai a uma seita ou “ritual mágico” e se sente bem deve ser discutido numa sessão de terapia, por exemplo? Cada um é soberano em suas escolhas e crenças. Todos nós somos preconceituosos, no sentido de que nossa história exige de nós uma interpretação para enxergar os fenômenos. Isso é algo adaptativo. No entanto, nunca podemos fazer de nossas crenças uma verdade absoluta a ponto de querer impor algo a alguém. A ligação entre nós, humanos, é a comunicação. A origem da palavra está em tornar algo comum, compartilhar. É a partir do diálogo, das experiências e de nossa história que criamos nosso mundo. Mas ele deve ser compartilhado e vivido de forma a amar as diferenças e não repudiá-las.
Mergulhar em outra cultura é tornar-se ciente de que isso é talvez um dos passos mais nobres que um homem pode dar. A busca da verdade de cada um, ou seja, das crenças, são criações humanas muito particulares. O fanático impõe aquilo que ele já tem de pronto e estabelecido em sua trama pessoal de conhecimento e quer impor ao outro, como disse uma vez Calligaris. O nobre é aquele que sabe que impor algo é uma tentativa de privar a liberdade do outro e a sua própria. Por isso, sejamos mais tolerantes com as crenças, se elas não são impostas e não violentas para nós, não há motivos para revoltas, mas para crescimento de todos os lados. As crenças nos tornam únicos e sociais dentro de um grupo homogêneo, transformando-o em um grupo mais heterogêneo. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, são fluídas e corrente de vida.

Daniel Stephan Wajss