quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"É preciso sair de casa para crescer?"


               Quando eu tinha aproximadamente vinte anos decidi mudar para outro país, de preferência longe e que fosse “interessante”. Definitivamente, algo me dizia que deveria ir e aquele era o momento. Decidi ir para a Austrália. Tranquei minha faculdade de engenharia ao concluir o quarto semestre e, após longas conversas com meus pais diante de uma oportunidade, ficou acordado que iria estudar intensivamente inglês e trabalhar para me manter independente, seja lá no que fosse. Após isso, regressaria aos meus estudos e retornaria com o meu “diferencial” curricular e, como todos estudantes, conseguiria  iniciar um estágio e ingressar em minha vida profissional com a segurança que a profissão de engenheiro proporciona.
               Se por um lado tudo fora calculado a fios, por outro a minha experiência provou sua insustentabilidade. Primeiro, o que era para durar 5 meses, tornaram-se 10. Segundo, a busca de um emprego que estava se tornando um terror, concretizou-se quando já havia praticamente desistido, uma vez que estávamos todos em um momento de crise e muitos buscavam por empregos, assim não seria um brasileiro que iria conseguir uma vaga de um australiano. Lembro como se fosse hoje o planejamento da entrevista que quebrou esse paradigma: Cada palavra, cada vírgula e cada detalhe da entrevista. Isso porque ela já estava toda simulada em minha cabeça. Na entrevista em que conquistei o emprego não haveria nada que se divergia das demais, a não ser pelo fato de que apostei na ousadia, tentando incansavelmente provar para a gerente de que eu iria fazer a diferença lá dentro. Resolví esquecer o “script” das respostas e improvisar ao meu modo, ou ao modo que “rolasse”. Não precisei terminar de falar. Logo me veio a resposta de que eu seria contratado e que eu precisaria entregar os documentos o quanto antes e que, deveria fazer dois cursos de um dia. Foi um dos episódios mais marcantes de minha vida. Os documentos estavam lá e, ir em busca dos cursos foi meu foco ao sair com um sorriso que representou meu sinal de vitória!
               Em relação ao lugar em que eu estava morando, eu tinha que decidir rapidamente a minha mudança. Isso porque a casa em que estava dividindo com dois estudantes estrangeiros, seria entregue em uma semana. Estava bastante preocupado em resolver minha situação. Apesar de ter garantido o emprego, minha situação financeira não estava fácil.
               Na Universidade, onde havia diversas propagandas e no instituto de línguas, fui atrás de auxílio. Mas tudo estava caro e sabia que conseguiria encontrar um lugar bom e mais barato do que estava aparecendo. Como andava de bicicleta pela cidade e de trem, com a bicicleta dentro, fui em vários lugares para tentar encontrar algum que tivesse um quarto razoável, fosse limpo e pessoas ao menos aparentemente “corretas”. Foi difícil, mas achei e meu salário cobriria as despesas de tudo e sobraria alguma reserva, certamente nada luxuosa.
               Um fato curioso era que morar perto do mar era para mim algo que pesava muito. Realmente estava praticando surfe e poder observar o mar antes de pedalar até a faculdade era algo terapêutico.
               Lembro perfeitamente que para concluir o curso deveria avançar 5 semanas, dentro do que havia pago. Por isso, pedí para fazer uma prova após concluir 5 semanas do módulo avançado que eu havia iniciado. Deu certo. Ninguém iria gostar de estudar inglês lá fora e voltar sem um currículo de conclusão de curso. Não foi fácil só pela prova, mas por inúmeros motivos.
               Aliás, todas essas histórias “triviais” foram marcadas por grandes acontecimentos, sejam para o bem, sejam para o mal. Lembro que em um dos módulos de aula, cada aluno deveria preparar um seminário. Foi bastante chocante para mim a apresentação de um colega palestino. Não pelo fato dele ser palestino e eu judeu, até porque para mim a diferença nunca deve ser motivo para culminar um fim de um relacionamento, muito pelo contrário. Paradoxal saber que, quando ele soube que eu era brasileiro, em nossa apresentação de classe, eu viraria um ídolo, até ele saber minhas raízes judaicas. O seminário apresentado por ele era de ideologia do grupo palestino, dirigente da faixa de Gaza e radical, o Hamás. Pregava a exclusão de Israel. Lembro que ele olhava para mim durante seu seminário com ódio. Dizia, como em vários discursos anti-semitas, a extinção e o não reconhecimento de um estado judeu. O seminário virou mais uma pregação anti-semita que um simples seminário para concluir o curso de inglês. Dizia que eles nunca iriam desistir da Palestina inteira, seja lá o que fosse necessário fazer.
               Foi bastante complicado lidar com essa situação, uma vez que, infelizmente, apesar de eu ter estudado durante um curto período de minha vida em um colégio judaico, eu ainda estava longe de compreender a complexidade desse conflito que existe desde a criação do estado judeu para debater com propriedade. Além disso, ficara claro que qualquer colocação minha seria refutada, suas ideias estavam solidificadas que nem uma crosta. Certamente, ele estava lá sendo financiado para estudar engenharia e auxiliar no futuro de seu país no futuro, digo, país, porque creio na coexistência de um estado palestino e outro judaico. Os vínculos desse rapaz com membros políticos extremistas da palestina eram evidentes. Permanecí em meu lugar enquanto ele jogava sua raiva em defesa de seu povo, olhando a situação de forma completamente unilateral. Enquanto a maioria da classe, formada por chineses e sul-coreanos, nem sequer parecia ter algum conhecimento do conflito, ou ao menos, não demonstravam isso, eu dizia que a situação era muito complexa para ser levada num seminário daquela natureza. Disse que não conhecia a fundo a problemática da situação, mas que certamente a ideia de excluir Israel parecia, para mim, triste e inviável. Após o seminário, ele veio para cima de mim e trocamos algumas “pancadas”, tive de me defender. Fomos separados pela professora que, junto à coordenação, me pediu desculpas. Ele foi transferido para outra classe. Ganhei um olho roxo no dia seguinte. E eu, nem sequer sigo as tradições de minha ancestralidade cultural e religiosa, nem sequer concordo com muitas interpretações ideológicas que são propagadas como reais e fixas. Mas tenho a origem e, não posso negar, ainda que sofra com isso até hoje.
               Muitos outros eventos ocorreram: quando fui postergar meu visto para permanecer na Australia, a imigração descobriu que eu detinha um visto “errado”, pois no código dizia que eu era voluntário. Tive de ouvir muito na imigração. Quando me defendí, dizendo que estava custando caro viver lá e que eu estava dando dinheiro para o país, além de que, se havia um erro no meu visto, isso não era problema meu, e sim um erro provavelmente decorrente na embaixada australiana no Brasil. Fiquei feliz em conseguir me posicionar, mas preocupado com o fato de que a mulher que havia me recebido me ameaçava deportar da Australia, algo que realmente eu não duvidava que poderia acontecer. Disse ainda que meu inglês era bom demais para eu pedir uma extensão de curso. Desta forma, “não via motivos em confiar em mim”(sic). Foi lamentável a situação. Dormí num albergue em Sydney com o pouco dinheiro que havia em minha carteira para resolver a situação no dia seguinte, sem ter de voltar para Newcastle, o que seria inviável. No final, tudo ocorreu bem. Viram pelo sistema que realmente acontecera um erro de digitalização no consulado do Brasil, o que mudou a postura de forma radical da moça que havia se responsabilizado de minha situação.
               Ligar para o Brasil era muito caro. Além disso, o fuso horário era de 25horas de diferença. Poucas vezes pude ligar para resolver ou pedir auxílio para problemas críticos como esse. Mas, por incrível que pareça, de pequenas histórias vamos aprendendo a ver o mundo com outros olhos. Não posso deixar de dizer de coisas muito positivas que experienciei lá. Eu era muito bem tratado por ser brasileiro. Parece que a cultura por sí só já gera uma curiosidade enorme por parte dos estrangeiros e australianos que encontrei por alí.
               O choque cultural é muito grande. Mas crescí demais durante esse tempo. Amadurecí coisas que não teria amadurecido em anos vivendo “em casa”. Viver em uma outra cultura me obrigou a ver eles sob a óptica deles, o que foi definitivo para decidir que o humano é um ser incrível.
               A diversidade da flora e fauna lá era algo maestral. As paisagens me marcaram muito. Os animais, os cantos dos pássaros, as aranhas nativas que eram frequentemente encontradas nas casas, o barulho dos sapos durante a noite...tudo isso me fascinava.
               Morando lá pude ver que as pessoas não tinham o mesmo ritmo que aqui no Brasil. Ou seja, elas se formavam na escola e frequentavam a Universidade bem mais adiante. Não havia muita cobrança como aqui: “se forma já sabendo a faculdade que vai prestar”. Acho que foi ter contato com essa tranquilidade que decidi que estudaria psicologia. Depois de observar o quanto uma cultura era diferente da outra, ví com meus olhos coisas impressionantes. Coisas que nos faz ver o lado bom e ruim de nosso pais, que faz com que percebamos que ele não é nem melhor nem pior, apenas diferente. Ver a diversidade dos animais e observar as interações humanas me convocaram para a psicologia. Era o que eu queria estudar. Eu queria compreender as interações, nosso funcionamento, porque agimos de um jeito e eles de outro, qual as nuances pessoais, quais culturais. Tanto dos humanos quanto dos animais. Isso tudo nitidamente, já havia notado, era decorrente do contexto em que vivemos. Eu queria ir a fundo nisso e descobrí que não conseguiria prosseguir com a engenharia mais. Não fazia mais sentido naquele momento para mim. Eu tinha sede de estudar coisas que não estavam diretamente ligadas à matemática, apesar de hoje a neurociência e a etologia mostrarem isso cada vez mais de forma consistente.
               Minha paixão pelos bichos, pelos homens e pelo mundo só apareceu quando eu saí de casa. Foi me perdendo pelo mundo que eu me encontrei. Quando estava mais preparado em não encontrar ninguém ao meu lado para socorrer. Tive que sair de casa para perceber isso.
               Nesse ano mudei para Natal, por motivos dessa vez conhecidos. Parece que “nosso encontro conosco” só ocorre quando nos abrimos para o mundo que se abre. E nosso encontro com o mundo só se dá quando saímos de casa, literalmente. Só assim valorizamos também, o quanto nossa família é importante, nossos amigos leais e os atos mais simples de bondade que ocorrem em pequenas atitudes e de boa fé. Há poucos dias fiz uma prova de mestrado na UFRN a qual me dediquei muito para passar. Uma prova que era definitiva para mim, em todos aspectos, além do simbólico, que seria determinante para minha vinda para Natal. Com muito esforço, passei. Passei no que queria, em Psicobiologia e serei orientado por um amigo e grande neurocientista, cujos cafés compartilhados me rendem ideias geniais que me motivam muito.
Compreender o ser humano é uma tarefa fantástica e prazerosa que caiu em meu destino. Há muito o que fazer, há muito o que aprender, a começar a “ensinar” que quem estuda o “cérebro”, ou melhor, quem é um “cientista” não vê o cérebro de forma não integrada ao corpo, como muito se fala por aí. Não há separação entre razão e emoção, como disse Descartes. Estudar o que se passa em nosso cérebro permite visualizar o que se passa em nosso corpo e em nosso “eu” de forma holística, porque mente e corpo são coisas indivisíveis. Cada vez mais estamos integrando, de forma multidisciplinar, as áreas do conhecimento para conhecer melhor a natureza, da qual fazemos partes. Ter passado em Mestrado em Psicobiologia, numa Universidade Federal renomada, em um lugar maravilhoso, foi e será um marco em minha vida. Um laboratório a céu aberto, com muitas coisas para fazer e, melhor, com muito prazer.
Voltando ao título me pergunto como comecei a escrever esse texto até chegar aqui. Talvez, a resposta que eu estava procurando ainda desemboque em questionamentos. Creio que no aspecto simbólico, sair de casa significa seguir adiante e se apropriar de nossas experiências que, por bem, nos fazem conhecer quem somos e o que podemos e queremos fazer para nos tornarmos melhores e realizados. E claro, menos ingênuos.