Quando eu tinha aproximadamente vinte anos decidi mudar para outro país, de preferência longe e que fosse “interessante”. Definitivamente, algo me dizia que deveria ir e aquele era o momento. Decidi ir para a Austrália. Tranquei minha faculdade de engenharia ao concluir o quarto semestre e, após longas conversas com meus pais diante de uma oportunidade, ficou acordado que iria estudar intensivamente inglês e trabalhar para me manter independente, seja lá no que fosse. Após isso, regressaria aos meus estudos e retornaria com o meu “diferencial” curricular e, como todos estudantes, conseguiria iniciar um estágio e ingressar em minha vida profissional com a segurança que a profissão de engenheiro proporciona.
Se por um
lado tudo fora calculado a fios, por outro a minha experiência provou sua
insustentabilidade. Primeiro, o que era para durar 5 meses, tornaram-se 10.
Segundo, a busca de um emprego que estava se tornando um terror, concretizou-se
quando já havia praticamente desistido, uma vez que estávamos todos em um
momento de crise e muitos buscavam por empregos, assim não seria um brasileiro
que iria conseguir uma vaga de um australiano. Lembro como se fosse hoje o
planejamento da entrevista que quebrou esse paradigma: Cada palavra, cada
vírgula e cada detalhe da entrevista. Isso porque ela já estava toda simulada
em minha cabeça. Na entrevista em que conquistei o emprego não haveria nada que
se divergia das demais, a não ser pelo fato de que apostei na ousadia, tentando
incansavelmente provar para a gerente de que eu iria fazer a diferença lá
dentro. Resolví esquecer o “script” das respostas e improvisar ao meu modo, ou
ao modo que “rolasse”. Não precisei terminar de falar. Logo me veio a resposta
de que eu seria contratado e que eu precisaria entregar os documentos o quanto
antes e que, deveria fazer dois cursos de um dia. Foi um dos episódios mais
marcantes de minha vida. Os documentos estavam lá e, ir em busca dos cursos foi
meu foco ao sair com um sorriso que representou meu sinal de vitória!
Em
relação ao lugar em que eu estava morando, eu tinha que decidir rapidamente a
minha mudança. Isso porque a casa em que estava dividindo com dois estudantes
estrangeiros, seria entregue em uma semana. Estava bastante preocupado em
resolver minha situação. Apesar de ter garantido o emprego, minha situação
financeira não estava fácil.
Na
Universidade, onde havia diversas propagandas e no instituto de línguas, fui
atrás de auxílio. Mas tudo estava caro e sabia que conseguiria encontrar um
lugar bom e mais barato do que estava aparecendo. Como andava de bicicleta pela
cidade e de trem, com a bicicleta dentro, fui em vários lugares para tentar
encontrar algum que tivesse um quarto razoável, fosse limpo e pessoas ao menos
aparentemente “corretas”. Foi difícil, mas achei e meu salário cobriria as
despesas de tudo e sobraria alguma reserva, certamente nada luxuosa.
Um fato
curioso era que morar perto do mar era para mim algo que pesava muito.
Realmente estava praticando surfe e poder observar o mar antes de pedalar até a
faculdade era algo terapêutico.
Lembro
perfeitamente que para concluir o curso deveria avançar 5 semanas, dentro do
que havia pago. Por isso, pedí para fazer uma prova após concluir 5 semanas do
módulo avançado que eu havia iniciado. Deu certo. Ninguém iria gostar de
estudar inglês lá fora e voltar sem um currículo de conclusão de curso. Não foi
fácil só pela prova, mas por inúmeros motivos.
Aliás,
todas essas histórias “triviais” foram marcadas por grandes acontecimentos,
sejam para o bem, sejam para o mal. Lembro que em um dos módulos de aula, cada
aluno deveria preparar um seminário. Foi bastante chocante para mim a
apresentação de um colega palestino. Não pelo fato dele ser palestino e eu
judeu, até porque para mim a diferença nunca deve ser motivo para culminar um
fim de um relacionamento, muito pelo contrário. Paradoxal saber que, quando ele
soube que eu era brasileiro, em nossa apresentação de classe, eu viraria um
ídolo, até ele saber minhas raízes judaicas. O seminário apresentado por ele
era de ideologia do grupo palestino, dirigente da faixa de Gaza e radical, o
Hamás. Pregava a exclusão de Israel. Lembro que ele olhava para mim durante seu
seminário com ódio. Dizia, como em vários discursos anti-semitas, a extinção e
o não reconhecimento de um estado judeu. O seminário virou mais uma pregação
anti-semita que um simples seminário para concluir o curso de inglês. Dizia que
eles nunca iriam desistir da Palestina inteira, seja lá o que fosse necessário
fazer.
Foi
bastante complicado lidar com essa situação, uma vez que, infelizmente, apesar
de eu ter estudado durante um curto período de minha vida em um colégio
judaico, eu ainda estava longe de compreender a complexidade desse conflito que
existe desde a criação do estado judeu para debater com propriedade. Além
disso, ficara claro que qualquer colocação minha seria refutada, suas ideias
estavam solidificadas que nem uma crosta. Certamente, ele estava lá sendo
financiado para estudar engenharia e auxiliar no futuro de seu país no futuro,
digo, país, porque creio na coexistência de um estado palestino e outro judaico.
Os vínculos desse rapaz com membros políticos extremistas da palestina eram
evidentes. Permanecí em meu lugar enquanto ele jogava sua raiva em defesa de
seu povo, olhando a situação de forma completamente unilateral. Enquanto a
maioria da classe, formada por chineses e sul-coreanos, nem sequer parecia ter
algum conhecimento do conflito, ou ao menos, não demonstravam isso, eu dizia
que a situação era muito complexa para ser levada num seminário daquela
natureza. Disse que não conhecia a fundo a problemática da situação, mas que
certamente a ideia de excluir Israel parecia, para mim, triste e inviável. Após
o seminário, ele veio para cima de mim e trocamos algumas “pancadas”, tive de
me defender. Fomos separados pela professora que, junto à coordenação, me pediu
desculpas. Ele foi transferido para outra classe. Ganhei um olho roxo no dia
seguinte. E eu, nem sequer sigo as tradições de minha ancestralidade cultural e
religiosa, nem sequer concordo com muitas interpretações ideológicas que são
propagadas como reais e fixas. Mas tenho a origem e, não posso negar, ainda que
sofra com isso até hoje.
Muitos
outros eventos ocorreram: quando fui postergar meu visto para permanecer na
Australia, a imigração descobriu que eu detinha um visto “errado”, pois no
código dizia que eu era voluntário. Tive de ouvir muito na imigração. Quando me
defendí, dizendo que estava custando caro viver lá e que eu estava dando
dinheiro para o país, além de que, se havia um erro no meu visto, isso não era
problema meu, e sim um erro provavelmente decorrente na embaixada australiana
no Brasil. Fiquei feliz em conseguir me posicionar, mas preocupado com o fato
de que a mulher que havia me recebido me ameaçava deportar da Australia, algo
que realmente eu não duvidava que poderia acontecer. Disse ainda que meu inglês
era bom demais para eu pedir uma extensão de curso. Desta forma, “não via
motivos em confiar em mim”(sic). Foi lamentável a situação. Dormí num albergue
em Sydney com o pouco dinheiro que havia em minha carteira para resolver a
situação no dia seguinte, sem ter de voltar para Newcastle, o que seria
inviável. No final, tudo ocorreu bem. Viram pelo sistema que realmente
acontecera um erro de digitalização no consulado do Brasil, o que mudou a
postura de forma radical da moça que havia se responsabilizado de minha
situação.
Ligar
para o Brasil era muito caro. Além disso, o fuso horário era de 25horas de diferença.
Poucas vezes pude ligar para resolver ou pedir auxílio para problemas críticos
como esse. Mas, por incrível que pareça, de pequenas histórias vamos aprendendo
a ver o mundo com outros olhos. Não posso deixar de dizer de coisas muito
positivas que experienciei lá. Eu era muito bem tratado por ser brasileiro.
Parece que a cultura por sí só já gera uma curiosidade enorme por parte dos
estrangeiros e australianos que encontrei por alí.
O choque
cultural é muito grande. Mas crescí demais durante esse tempo. Amadurecí coisas
que não teria amadurecido em anos vivendo “em casa”. Viver em uma outra cultura
me obrigou a ver eles sob a óptica deles, o que foi definitivo para decidir que
o humano é um ser incrível.
A
diversidade da flora e fauna lá era algo maestral. As paisagens me marcaram
muito. Os animais, os cantos dos pássaros, as aranhas nativas que eram
frequentemente encontradas nas casas, o barulho dos sapos durante a
noite...tudo isso me fascinava.
Morando
lá pude ver que as pessoas não tinham o mesmo ritmo que aqui no Brasil. Ou
seja, elas se formavam na escola e frequentavam a Universidade bem mais
adiante. Não havia muita cobrança como aqui: “se forma já sabendo a faculdade
que vai prestar”. Acho que foi ter contato com essa tranquilidade que decidi
que estudaria psicologia. Depois de observar o quanto uma cultura era diferente
da outra, ví com meus olhos coisas impressionantes. Coisas que nos faz ver o
lado bom e ruim de nosso pais, que faz com que percebamos que ele não é nem
melhor nem pior, apenas diferente. Ver a diversidade dos animais e observar as
interações humanas me convocaram para a psicologia. Era o que eu queria
estudar. Eu queria compreender as interações, nosso funcionamento, porque
agimos de um jeito e eles de outro, qual as nuances pessoais, quais culturais.
Tanto dos humanos quanto dos animais. Isso tudo nitidamente, já havia notado,
era decorrente do contexto em que vivemos. Eu queria ir a fundo nisso e
descobrí que não conseguiria prosseguir com a engenharia mais. Não fazia mais
sentido naquele momento para mim. Eu tinha sede de estudar coisas que não
estavam diretamente ligadas à matemática, apesar de hoje a neurociência e a
etologia mostrarem isso cada vez mais de forma consistente.
Minha
paixão pelos bichos, pelos homens e pelo mundo só apareceu quando eu saí de
casa. Foi me perdendo pelo mundo que eu me encontrei. Quando estava mais
preparado em não encontrar ninguém ao meu lado para socorrer. Tive que sair de
casa para perceber isso.
Nesse ano
mudei para Natal, por motivos dessa vez conhecidos. Parece que “nosso encontro
conosco” só ocorre quando nos abrimos para o mundo que se abre. E nosso
encontro com o mundo só se dá quando saímos de casa, literalmente. Só assim
valorizamos também, o quanto nossa família é importante, nossos amigos leais e
os atos mais simples de bondade que ocorrem em pequenas atitudes e de boa fé.
Há poucos dias fiz uma prova de mestrado na UFRN a qual me dediquei muito para
passar. Uma prova que era definitiva para mim, em todos aspectos, além do simbólico,
que seria determinante para minha vinda para Natal. Com muito esforço, passei.
Passei no que queria, em Psicobiologia e serei orientado por um amigo e grande neurocientista,
cujos cafés compartilhados me rendem ideias geniais que me motivam muito.
Compreender o ser humano é uma tarefa
fantástica e prazerosa que caiu em meu destino. Há muito o que fazer, há muito
o que aprender, a começar a “ensinar” que quem estuda o “cérebro”, ou melhor,
quem é um “cientista” não vê o cérebro de forma não integrada ao corpo, como
muito se fala por aí. Não há separação entre razão e emoção, como disse
Descartes. Estudar o que se passa em nosso cérebro permite visualizar o que se
passa em nosso corpo e em nosso “eu” de forma holística, porque mente e corpo são
coisas indivisíveis. Cada vez mais estamos integrando, de forma multidisciplinar,
as áreas do conhecimento para conhecer melhor a natureza, da qual fazemos
partes. Ter passado em Mestrado em Psicobiologia, numa Universidade Federal
renomada, em um lugar maravilhoso, foi e será um marco em minha vida. Um
laboratório a céu aberto, com muitas coisas para fazer e, melhor, com muito
prazer.
Voltando ao título me pergunto como
comecei a escrever esse texto até chegar aqui. Talvez, a resposta que eu estava
procurando ainda desemboque em questionamentos. Creio que no aspecto simbólico,
sair de casa significa seguir adiante e se apropriar de nossas experiências
que, por bem, nos fazem conhecer quem somos e o que podemos e queremos fazer
para nos tornarmos melhores e realizados. E claro, menos ingênuos.